A PSICOLOGIA CIENTÍFICA


Apesar de reconhecermos a existência de uma psicologia do senso comum e, de certo modo, estarmos preocupados em defini-la, é com a outra psicologia que este livro deverá ocupar-se — a Psicologia científica. Foi preciso definir o senso comum, para que o leitor pudesse demarcar o campo de atuação de cada uma, sem confundi-las.
Entretanto a tarefa de definir a Psicologia como ciência é bem mais árdua e complicada. Comecemos por definir o que entendemos por ciência (que também não é simples), para depois explicarmos por que a Psicologia é hoje considerada uma de suas áreas.

O QUE É CIÊNCIA
A ciência compõe-se de um conjunto de conhecimentos sobre fatos ou aspectos da realidade (objeto de estudo), expresso por meio de uma linguagem precisa e rigorosa. Esses conhecimentos devem ser obtidos de maneira programada, sistemática e controlada, para que se permita a verificação de sua validade. Assim, podemos apontar o objeto dos diversos ramos da ciência e saber exatamente como determinado conteúdo foi construído, possibilitando a reprodução da experiência. Dessa forma, o saber pode ser transmitido, verificado, utilizado e desenvolvido. 

Essa característica da produção científica possibilita sua continuidade: um novo conhecimento é produzido sempre a partir de algo anteriormente desenvolvido. Negam-se, reafirmam-se, descobrem-se novos aspectos, e assim a ciência avança. Nesse sentido, a ciência caracteriza-se como um processo.

Pense no desenvolvimento do motor movido a álcool hidratado. Ele nasceu de uma necessidade concreta (crise do petróleo) e foi planejado a partir do motor a gasolina, com a alteração de poucos componentes deste. No entanto, os primeiros automóveis movidos a álcool apresentaram muitos problemas, como o seu mau funcionamento nos dias frios. Apesar disso, esse tipo de motor foi-se aprimorando.

A ciência tem ainda uma característica fundamental: ela aspira à objetividade. Suas conclusões devem ser passíveis de verificação e isentas de emoção, para, assim, tornarem-se válidas para todos.

Objeto específico, linguagem rigorosa, métodos e técnicas específicas, processo cumulativo do conhecimento, objetividade fazem da ciência uma forma de conhecimento que supera em muito o conhecimento espontâneo do senso comum. Esse conjunto de características é o que permite que denominemos científico a um conjunto de conhecimentos.

OBJETO DE ESTUDO DA PSICOLOGIA
Como    dissemos anteriormente,    um conhecimento, para ser considerado científico, requer um objeto específico de estudo. O objeto da Astronomia são os astros, e o objeto da Biologia „    XT    são os seres vivos. Essa  classificação    bem    geral demonstra que é possível tratar o objeto dessas ciências com uma certa distância, ou seja, é possível isolar o objeto de estudo. No caso da Astronomia, o cientista-observador está, por exemplo, num observatório, e o astro observado, a anos-luz de distância de seu telescópio. Esse cientista não corre o mínimo risco de confundir-se com o fenômeno que está estudando. 
O mesmo não ocorre com a Psicologia, que, como a Antropologia, a Economia, a Sociologia e todas as ciências humanas, estuda o homem.
Certamente, esta divisão é ampla demais e apenas coloca a Psicologia entre as ciências humanas. Qual é, então, o objeto específico de estudo da Psicologia?
Se dermos a palavra a um psicólogo comportamentalista, ele dirá: “O objeto de estudo da Psicologia é o comportamento humano”. Se a palavra for dada a um psicólogo psicanalista, ele dirá: “O objeto de estudo da Psicologia é o inconsciente”. Outros dirão que é a consciência humana, e outros, ainda, a personalidade.
Diversidade de objetos da Psicologia
A diversidade de objetos da Psicologia é explicada pelo fato de este campo do conhecimento ter-se constituído como área do conhecimento científico só muito recentemente (final do século 19), a despeito de existir há muito tempo na Filosofia enquanto preocupação humana. Esse fato é importante, já que a ciência se caracteriza pela exatidão de sua construção teórica, e, quando uma ciência é muito nova, ela não teve tempo ainda de apresentar teorias acabadas e definitivas, que permitam determinar com maior precisão seu objeto de estudo.
Um outro motivo que contribui para dificultar uma clara definição de objeto da Psicologia é o fato de o cientista — o pesquisador — confundir-se com o objeto a ser pesquisado. No sentido mais amplo, o objeto de estudo da Psicologia é o homem, e neste caso o pesquisador está inserido na categoria a ser estudada. Assim, a concepção de homem que o pesquisador traz consigo “contamina” inevitavelmente a sua pesquisa em Psicologia. Isso ocorre porque há diferentes concepções de homem entre os cientistas (na medida em que estudos filosóficos e teológicos e mesmo doutrinas políticas acabam definindo o homem à sua maneira, e o cientista acaba necessariamente se vinculando a uma destas crenças). É o caso da concepção de homem natural, formulada pelo filósofo francês Rousseau, que imagina que o homem era puro e foi corrompido pela sociedade, e que cabe então ao filósofo reencontrar essa pureza perdida (veja capítulo 10). Outros vêem o homem como ser abstrato, com características definidas e que não mudam, a despeito das condições sociais a que esteja submetido. Nós, autores deste livro, vemos esse homem como ser datado, determinado pelas condições históricas e sociais que o cercam.

Na realidade, este é um “problema” enfrentado por todas as ciências humanas, muito discutido pelos cientistas de cada área e até agora sem perspectiva de solução. Conforme a definição de homem adotada, teremos uma concepção de objeto que combine com ela. Como, neste momento, há uma riqueza de valores sociais que permitem várias concepções de homem, diríamos simplificada-mente que, no caso da Psicologia, esta ciência estuda os “diversos homens” concebidos pelo conjunto social. Assim, a Psicologia hoje se caracteriza por uma diversidade de objetos de estudo.
Por outro lado, essa diversidade de objetos justifica-se porque os fenômenos psicológicos são tão diversos, que não podem ser acessíveis ao mesmo nível de observação e, portanto, não podem ser sujeitos aos mesmos padrões de descrição, medida, controle e interpretação. O objeto da Psicologia deveria ser aquele que reunisse condições de aglutinar uma ampla variedade de fenômenos psicológicos. Ao estabelecer o padrão de descrição, medida, controle e interpretação, o psicólogo está também estabelecendo um determinado critério de seleção dos fenômenos psicológicos e assim definindo um objeto.
Esta situação leva-nos a questionar a caracterização da Psicologia como ciência e a postular que no momento não existe uma psicologia, mas Ciências psicológicas embrionárias e em desenvolvimento.
A SUBJETIVIDADE COMO OBJETO DA PSICOLOGIA
Considerando toda essa dificuldade na conceituação única do objeto de estudo da Psicologia, optamos por apresentar uma definição que lhe sirva como referência para os próximos capítulos, uma vez que você irá se deparar com diversos enfoques que trazem definições específicas desse objeto, (o comportamento, o inconsciente, a consciência etc.).
A identidade da Psicologia é o que a diferencia dos demais ramos das ciências humanas, e pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca o homem de maneira particular. Assim, cada especialidade — a Economia, a Política, a História etc. — trabalha essa matéria-prima de maneira particular, construindo conhecimentos distintos e específicos a respeito dela. A Psicologia colabora com o estudo da subjetividade: é essa a sua forma particular, específica de contribuição para a compreensão da totalidade da vida humana.
Nossa matéria-prima, portanto, é o homem em todas as suas expressões, as visíveis (nosso comportamento) e as invisíveis (nossos sentimentos), as singulares (porque somos o que somos) e as genéricas (porque somos todos assim) — é o homem-corpo, homem-pensamento, homem-afeto, homem-ação e tudo isso está sintetizado no termo subjetividade.
A subjetividade é a síntese singular e individual que cada um de nós vai constituindo conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando as experiências da vida social e cultural; é uma síntese que nos identifica, de um lado, por ser única, e nos iguala, de outro lado, na medida em que os elementos que a constituem são experienciados no campo comum da objetividade social. Esta síntese — a subjetividade — é o mundo de idéias, significados e emoções construído internamente pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais.
O mundo social e cultural, conforme vai sendo experienciado por nós, possibilita-nos a construção de um mundo interior. São diversos fatores que se combinam e nos levam a uma vivência muito particular. Nós atribuímos sentido a essas experiências e vamos nos constituindo a cada dia.
A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, sonhar, amar e fazer de cada um. É o que constitui o nosso modo de ser: sou filho de japoneses e militante de um grupo ecológico, detesto Matemática, adoro samba e black music, pratico ioga, tenho vontade mas não consigo ter uma namorada. Meu melhor amigo é filho de descendentes de italianos, primeiro aluno da classe em Matemática, trabalha e estuda, é corinthiano fanático, adora comer sushi e navegar pela Internet. Ou seja, cada qual é o que é: sua singularidade.
Entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao indivíduo. Ele a constrói aos poucos, apropriando-se do material do mundo social e cultural, e faz isso ao mesmo tempo em que atua sobre este mundo, ou seja, é ativo na sua construção. Criando e transformando o mundo (externo), o homem constrói e transforma a si próprio.
Um mundo objetivo, em movimento, porque seres humanos o movimentam permanentemente com suas intervenções; um  mundo subjetivo em movimento porque os indivíduos estão permanentemente se apropriando de novas matérias-primas para constituírem suas subjetividades.
De um certo modo, podemos dizer que a subjetividade não só é fabricada, produzida, moldada, mas também é automoldável, ou seja, o homem pode promover novas formas de subjetividade, recusando-se ao assujeitamento e à perda de memória imposta pela fugacidade da informação; recusando a massificação que exclui e estigmatiza o diferente, a aceitação social condicionada ao consumo, a medicalização do sofrimento. Nesse sentido, retomamos a utopia que cada homem pode participar na construção do seu destino e de sua coletividade.
Por fim, podemos dizer que estudar a subjetividade, nos tempos atuais, é tentar compreender a produção de novos modos de ser, isto é, as subjetividades emergentes, cuja fabricação é social e histórica. O estudo dessas novas subjetividades vai desvendando as relações do cultural, do político, do econômico e do histórico na produção do mais íntimo e do mais observável no homem — aquilo que o captura, submete-o ou mobiliza-o para pensar e agir sobre os efeitos das formas de submissão da subjetividade (como dizia o filósofo francês Michel Foucault).
O movimento e a transformação são os elementos básicos de toda essa história. E aproveitamos para citar Guimarães Rosa, que em Grande Sertão: Veredas, consegue expressar, de modo muito adequado e rico, o que aqui vale a pena registrar:
“O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam”.
Convidamos você a refletir um pouco sobre esse pensamento de Guimarães Rosa. As pessoas não estão sempre iguais. Ainda não foram terminadas. Na verdade, as pessoas nunca serão terminadas, pois estarão sempre se modificando. Mas por quê? Como? Simplesmente porque a subjetividade — este mundo interno construído pelo homem como síntese de suas determinações — não cessará de  se modificar, pois as experiências sempre trarão novos elementos para renová-la.
Talvez você esteja pensando: mas eu acho que sou o que sempre fui — eu não me modifico! Por acompanhar de perto suas próprias transformações (não poderia ser diferente!), você pode não percebê-las e ter a impressão de ser como sempre foi. Você é o construtor da sua transformação (veja capítulo 13) e, por isso, ela pode passar despercebida, fazendo-o pensar que não se transformou. Mas você cresceu, mudou de corpo, de vontades, de gostos, de amigos, de atividades, afinou e desafinou, enfim, tudo em sua vida muda e, com ela, suas vivências subjetivas, seu conteúdo psicológico, sua subjetividade. Isso acontece com todos nós.
Bem, esperamos que você já tenha uma noção do que seja subjetividade e possamos, então, voltar a nossa discussão sobre o objeto da Psicologia.
A Psicologia, como já dissemos anteriormente, é um ramo das Ciências Humanas e a sua identidade, isto é, aquilo que a diferencia, pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca de maneira particular o objeto homem, construindo conhecimentos distintos e específicos a respeito dele. Assim, com o estudo da subjetividade, a Psicologia contribui para a compreensão da totalidade da vida humana.
É claro que a forma de se abordar a subjetividade, e mesmo a forma de concebê-la, dependerá da concepção de homem adotada pelas diferentes escolas psicológicas (veja capítulos 3, 4, 5 e 6). No momento, pelo pouco desenvolvimento da Psicologia, essas escolas acabam formulando um conhecimento fragmentário de uma única e mesma totalidade — o ser humano: o seu mundo interno e as suas manifestações. A superação do atual impasse levará a uma Psicologia que enquadre esse homem como ser concreto e multideterminado (veja capítulo 10). Esse é o papel de uma ciência crítica, da compreensão, da comunicação e do encontro do homem com o mundo em que vive, já que o homem que compreende a História (o mundo externo) também compreende a si mesmo (sua subjetividade), e o homem que compreende a si mesmo pode compreender o engendramento do mundo e criar novas rotas e utopias.
Algumas correntes da Psicologia consideram-na pertencente ao campo das Ciências do Comportamento e, outras, das Ciências Sociais. Acreditamos que o campo das Ciências Humanas é mais abrangente e condizente com a nossa proposta, que vincula a Psicologia à História, à Antropologia, à Economia etc.

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